segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Canção de bosque

BEKSINSKI, Zdzislaw. AA78, 1978.

É um vazio existencial tremendo. E como me dá fome estar nele jogado, arrastado por um retorno à pátria-mãe. Longe do solo da infância é que se pode ser si mesmo e viver como si-mesmo e sonhar e comer. É um vazio tremendo e imenso e dá sono e tira a fome e angustia. Lacero-me o braço e as pernas ao coçar e arranhar; impelido por um desconforto indeterminado e imensurável, lacero-me até mesmo o lacerar. Como dói o voltar do mesmo... Como entristece pensar que tem de ser como o é, para que de fato seja. É uma existência tremenda e como o seu vazio, no seio da pátria-mãe dá fome! Que venha o bosque.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Brief an das Nichts

GOYA Y LUCIENTE, Francisco de. Saturno devorando a un hijo, 1820-1823.


Liebster Freund,

Ich warte noch auf dich, obwohl ich schon tot bin. Ich warte aber noch, weil dein Geist mir so wichtig war. Ich warte auf dich, wegen meines Lebens, wegen meiner Angst, um allein zu sein. Wäre es nicht schön, wenn wir wieder zusammen wären? Du warst ja mein Freund; du bist noch mein Freund - der Liebster! Ich warte auf dich, um nicht mehr allein zu sein... Ich warte, hier im Nichts. Hier warte ich auf dich!

Mit freundlichen Grüßen,
Das Ich.

domingo, 5 de outubro de 2014

Γλαῦκος, o imortal

WATERHOUSE, John William. Circe Invidiosa, 1892.


Ficamos velhos, se antes não morrermos,
irremediavelmente.
Nada Valemos? Que com isso ganhamos?
Alguma coisa decerto.

Um quê menos estúpido do que
na vida esperanças depositar:
Tudo o mais! Os previdentes
Nos respondem: tudo o mais o é.
Antes esperar, como o fazem
Apenas poucos, não naturalmente!

Certo é padecermos de males tantos,
Indefinitivamente.
Com o tear da vida despercebidos:
Destino amalgamado.

E quanto vale um tecido já
Rasgado, perceberemos, contudo -
Já aos passos apressados, rumo
Ao melhor; inconteste, fugidio.
Mas manter-se-ão ocupados os
Braços relegados e esquecidos.

E para quem a vida oprimida resta,
O mostrar-se delirante.
Diante dos fios - aceitação difícil:
Ser unido ao divino.

domingo, 14 de setembro de 2014

Θάνατος

KLEVER, julius von. Der Erlkönig, 1887.


Porque é a morte quem sempre vem. É a morte quem [sempre] devora; e, através do sótão da nadidade, nos lança (a todos) no esquecimento. A morte não é um lugar, mas a carência de um: Θάνατος.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Requiem pro defunctis

GHEYN, Jacques de. Vanitas Still Life, 1603

[Recomenda-se seja lido em conjunto com "Tumba Mirum" de Alfred Schnittke, 3'52'']

Decepam-me as mãos: Ah! estes dedos finos que me olham. Caídos em medonho fogaréu, sisudos e melancólicos, esgueiram-se em apontar que a mim já não pertencem. E mesmo quando já tão esbeatados, largados ali em solo quente, vejo-os vivos e encaram-me tristonhos; olhar lacônico daqueles que a fala não dominam. Apontam-se a mim e eu a eles, por meio de meu grito agudo, pois a falta que eu sinto também eles a sentem - fôramos tão próximos outrora... Agora, ligados apenas pelo sangue empoçado, apontam-me todo o meu estar deles carente. E não que eu não possa tê-los, tanto é que para a minha consciência ainda os tenho e encaro-os como produto de futura atividade cadavérica. Pois é certo, amigo leitor, que esta carta que tens presa às suas garras, é fruto de fantasmagorias: o necromante que a escreveu tirou de minhas decepadas partes o fruto dessas palavras lidas e desdenho-me em vida a própria morte, que ocorreu. Mas passados instantes de um grito, contido a lábios presos entre os dentes, o sangue, aquele que empoçado estava, foi o garante da magia, cuja atividade espúria lançara um feitiço contra o tempo e permitiu que os mutilados membros, que olharam-me tão vivamente, produzissem ainda tal efeito que é hoje impossível dizer que dia é ou que horas são. Estou preso em um momento muito específico de minha vida e fustigo os meus pensamentos com lamúrias; estou preso em minha morte, quer dizer, no momento em que ela se deu. Essa é a tamanha angústia que os braços, as roupas, os beiços, os olhos e tudo o mais desse desgraçado desse mago me presentearam. Preso! Livre da morte, é claro, mas preso em minha consciência. E ainda por cima obrigado a escrever por meus punhos inexistentes! Amaldiçoo o dia em que fui obrigado a desejar. Obrigado, eu? Eu o quis! Agradeço por ter ainda para mim esse momento de prazer eterno! Vejo todos os dias o escarlate do meu éter venenoso, gosmento e antigo, e pasmem vocês, meus leitores nefastos, eu gosto disso! Sou obrigado a reviver cada instante de minha morte; e como isso é proveitoso. Aliás, é como olhar em mim mesmo o que a mim me falta. É o ápice de mim mesmo! Isso, o ápice de mim mesmo!

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

(Uma) Paródia "pós-moderna" [sobre a essência do cômico]

MAGRITTE, René. La Trahison des images (Ceci n'est pas une pipe), 1929.

[Recomenda-se seja lido em conjunto com "Gesang der Junglinge" de Karlheinz Stockhausen]


[Um conto - (uma) paródia "pós-moderna"]

Não existe o feio ou o belo, apenas o tosco! Eu sou o tosco, tu és o tosco e ele também o é. Mas é claro que existem toscos mais bonitos e toscos mais feios... Afinal, quem disse que não existe o feio ou o belo?! Eu sou o belo, tu também. Mas se o tosco é belo, então o que é o feio? Não existe o feio, mas o feio sou eu. Eu sou o feio; o feio és tu. O tosco é o feio que é o belo que é o tosco que é o belo que é o feito etc. Ora, e não é verdade que não existe verdade alguma? Esta verdade é apenas consensual, mas não existe consenso algum. E não existe verdade alguma sequer, pois nada é, e esta é de todas a maior verdade. E o tosco-belo-feio (que todos e cada um de nós somos) nada mais é do que o próprio veredito da verdade da inverdade que se dá verdadeiramente na relação casual que sempre ocorre. Eu sou o tosco e o tosco sou eu, mas nem eu e nem mesmo o tosco são.


[Um axioma e meio - um sorriso que chora]

Nem sempre é fácil definir o que as coisas são, mas a essência do cômico surge quando, a partir de confusões conceituais, ambas são expostas em sucessão, como um sorriso em um rosto que chora.


[Uma aporia resoluta? - "Ceci n'est pas une pipe"]

"Foi suficiente ao desenho mais correto uma inscrição como "Isto não é um cachimbo", para que logo a figura esteja obrigada a sair de si própria, isolar-se de seu espaço e, finalmente, pôr-se a flutuar, longe ou perto de si mesma, não se sabe, semelhante ou diferente de si." (FOUCAULT, Michel. Isto não é um cachimbo. São Paulo: Paz e Terra, 2008. p. 48).

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Sein-zum-Tode (als verborgen)

ERNST, Max. Der Hausengel, 1942.
[Lesen Sie gemeinsam mit "kosmogonia" de Krzysztof Penderecki]

Julia ist 46 Jahre alt, aber sie fühlt sich wie eine 30-Jährige. Das ist der Grund, warum sie sich immer auf die Vergangenheit bezieht. Sie hat einen Hund und ein schönes Motorrad: Denn sie glaubt, jünger zu sein, als sie in Wirklichkeit ist. Auch wegen dieser Beziehung, die sie mit sich selbst hat, trinkt sie sehr oft; und sie tanzt, isst und schläft, immer wann sie es kann. Nun reist sie, um nie mehr zurückzukommen, weil sie stirbt, während ihre Leben vorbeigeht.

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

ζωή

VAN GOGH, Vincent. Noite estrelada sobbre o Ródano, 1888.

[recomenda-se seja lido conjuntamente com "Gnossienne n. 1" de Erik Satie]


[prólogo - um axioma banal]

Você sabe quando uma pessoa está louca - ou quando tende à loucura - apenas em nela depositar o seu olhar (e ouvir dela as suas primeiras palavras)...

[colocação do problema - Léo e a loucura]

Léo estava deitado na areia e era um fim de tarde, mas várias reflexões assolavam-no enquanto assistia ao cair do sol atrás de si. Bem, não era ele quem estava louco, muito embora isto fosse possível, mas a loucura de todos era o que lhe batia com força na porta da inquietação! Claro que com estes pensamentos, sendo ele também um "mundano" - por estar junto a todos no mundo -, ele começara a refletir sobre sua loucura; mas este é um texto para outro dia ou talvez para nunca mais. Para Léo, neste momento, só importava saber como era fácil reconhecer um louco; e, por que não, como era fácil ser um... Bastava um olhar e poucas palavras; mas será que só isto? O que é que estava nisso contido? Talvez isto fosse o mais premente... Quiçá até o momento necessário para identificar um ou o outro caso.

[entreato - um axioma incomum]

Pois é no escuro que surgem os devaneios (ao menos é aí quando surgem os bons)!

[solução aporética - Léo e o fim da tarde]

Mas ele ainda deitado na areia e pouco a pouco aparecia a noite, ao substituir seu filho, o dia. Por exemplo, quando se fecham os olhos, ao se contemplar o fato de não ver, começa imediatamente uma cadeia de rememorações e criações espectrais (no que for possível falar em 'espectros' ou coisas semelhantes); e, então o mais escuro dos pensamentos surge como algo absurdo; mas logo após torna-se aceitável e, por fim, uma verdade (algo legal e colorido, como pensava Léo). E foi quando os últimos raios de Hélio, filho de Hyperion e irmão de Aurora celeste tocou os mantos do horizonte; foi aí que Léo levantou... Ele ainda não era destemido o bastante para saber enfrentar suas horas escuras em um lugar tão indomável como a natureza artificialmente planejada de uma praia de veraneio. Pois, apesar de ter sua casa tão próxima e de reconhecer que ao fechar os olhos fica tudo negro e sem "forma", ele pensara quão reconfortante seria poder abri-los e tudo ainda lá estar.

[posfácio - ζωή]

E, assim, não só largou na praia, ao prazer de Pontos, a sua dúvida sobre a loucura, como conquistou para o mundo o status de 'louco'.

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

O esvair-se do claro

BEKSIŃSKI, Zdzisław, 1983.
[sugere-se seja lido em conjunto com "Deshominisation" de Alain Goraguer.]


[Prelúdio]

Oh! Estes pensamentos das horas escuras... Conheço-os bem; malogro quando não... Findo o vespertino que, diante das portas da noite, jamais!

[Primeiro ato - um cravo e uma flauta doce]

Ao fundo uma flauta entorta o ar e me lança em prazer... Ou não seria isso complacência? O cravo marca o meu badalar e lanço-me outra vez em horas escuras; eu, este; eu o balouço de meu eu, isto. Pensando sobre mim como algo distante. Lançado, sem mais, com(o) a profundidade de um lago gelado, longe e coberto por montanhas, em todas as minhas (tão minhas!) horas escuras!

/hic clausula est/

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Vermelho (necessariamente em...)

MUNCH, Edvard. Love and pain (1893-94)

[Sugere-se que a leitura seja acompanhada de "Epei" (1976) de Iannis Xenakis]

Tem certeza, pequena; em algum momento o sangue ainda abrirá as tuas mãos em cor e férreo cheiro - e, embora não sintas dor, sofrerás uma das maiores agonias... Pois esta raiva que tiveste não a tempo contiveste e o vermelho em teus nódulos são daquele corpo inerte - que a frente se te projeta. E sim, pequena, assumirás a culpa - se não com a palavra, com o silêncio e a eternidade da loucura. Tu que sempre comedida e asseada foste, não passas de um fruto podre - pelo qual vermes amarelados dão o tom de tua doença. E padeces, com certeza; isto não negam os demais: padeces irascível de tua tão grande ira. Morreu aquela doce imagem - que agora tão só simulas; és um ponto de ti mesma, mas bem não mais te reconheces. Viva e presa neste sangue que escorre de teus punhos.