quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Potentia & potestas

Stuart Sutcliffe & Astrid Kirchherr

E aquele abraço, aquele caloroso abraço - cuja frieza jamais permitiu -, fora como um troféu nunca alcançado. E todos os dias, M., na cama, desliza para os seus próprios braços, em um movimento peristáltico entre sua boca e suas pernas. Ah!

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Jouer à "un, deux, trois, ..."


No sinal parara o ônibus. P., durante todo o caminho, sentara-se no meio do automóvel - para ser sincero, nem tanto assim; um pouco mais para frente, uma cadeira atrás da área reservada aos deficientes -, e, em um só instante, já estava em pé - mochila às costas -, segurando com ambas as mãos a metálico-cilíndrica estrutura de apoio. P. olhara para fora - e de um lado ao outro -, porquanto ainda acesa a rúbea sinaleta de trânsito. O escarlate em luz rebatia suavemente em seus óculos - na lente esquerda -, e isto fazia-o prestar-lhe atenção - muito embora não lhe consumisse energias ou trabalhos mentais exaustivos (como bem poderia), de forma a não recalcar de sua existência, nem sequer tolher seu olhar. Neste ínterim, já havia desviado sua mecânica testa-abre-mundo para um ponto remotamente escolhido à posição das duas horas - e por isso vira rapidamente duas figuras sem expressão, como que saídas diretamente das veias do chão, caminhando juntas - aos galopes. Como não lhes detivera o olhar, reparou apenas nos cabelos (escuros e soltos), na suave maquiagem e nas roupas (uma vestia preto e a outra branco). Mas isto só fora possível devido a sua escancarada falta de atenção, o que não tira nem afirma o quão desinteressantes eras as duas moças - se bem que P. as achasse. Não sendo suficiente, e já buscando outro alvo para o seu rotativo mental, P. observara que o senhor - gordo, careca e calmamente ansioso (todavia fosse impossível provar e dizer com certeza) - as seguiu com o girar-de-cabeça típico daqueles que observam. Não é possível, decerto, que lhes tenha achado gosto, pensara P., contudo fosse justamente o caso. Chegara à sua parada.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Psicografia: elogio à Trasímaco


Toda beleza encontra-se - por natureza e a priori - no espírito torpe. Isto quer dizer, no agir torto e injustamente (ver-se-á adiante qual o sentido de justiça e injustiça). Tal é verdade a partir do fato de que os resultados proveitosos advém, necessariamente, de um agir contrário à moral - e deve-se tomar por certo que esta [moral] é uma forma de diminuição da potência individual [do humano particular]. Este devir [potência] deve ser seta, no sentido antiquíssimo e moderno, ora como flecha atirada ao alvo ora como o próprio lugar do reconhecimento sensível de um local (ou mesmo alguma coisa) desejada.

Acontece que a justiça só existe, atualmente, quando se interpreta a igualdade e a retribuição. Sendo que ambos estes princípios servem para demonstrar um mesmo lado sob dois modos: um negativo-positivo - que caberia ao último [retribuição] isoladamente - e um positivo-negativo que acompanha o primeiro [igualdade] em todos os momentos da existência de sua pressuposição. Pois bem, a retribuição nem sempre é negativa, tendo em vista o encerramento em si própria de um princípio de vingança e desconfiança que deve ser explorado até as últimas conseqüências; a igualdade, por sua vez, é completamente detestável como finalidade, pois, partindo das diferenças concretas e efetivas, chegar-se-á em um momento de identidade por descaracterização do fato sensível - isto significa dizer: passar-se-á a desconsiderar uma desigualdade potencializadora em detrimento de um padrão mediano.

Encarar a justiça como aquilo que (a) se deve retribuir [princípio da retribuição] em (b) iguais partes aos iguais [princípio da igualdade] só é problema quando os iguais estão no mesmo patamar do governante; isto é dizer, só não é problema quando se considerar iguais todos os que desiguais ao mais forte, cuja condição se-lhe excetua da medianidade (por causa de sua excelência, poder e domínio). Por outro lado, e dando azo a este argumento, é extremamente inoperante e destrutivo salvaguardar a igualdade indistintamente, pois assim seria impossível manter a justiça ou injustiça [qualquer potência de um ato], mas apenas a medianidade; pois, se se assume que a justiça é igualdade e retribuição chega-se ao paradigma tradicional de que o justo é ou (a) o meio termo ou (b) suum cuique, contudo isto é inadimissível, pois o que se considerou na história do pensamento virtude nada mais é que vício. Entretanto, saliente-se, tudo o que vício e ignorância para esta inexpressiva, delével e deletéria "tradição", relegado à estirpe de baixo calão, é o que mais próprio de ser justo, visto que é o que maior felicidade individual se atribui ao mais forte - e mesmo aos seus súditos, pois restarão inocentes e irresponsáveis pelas decisões de "Estado".

E bem poder-se-ia parar por aqui, pois não há necessidade de explicação do que óbvio, principalmente quando se impõe por/pela força. Contudo, apenas para justificar a imagem do eu lírico, afirma-se: jamais existiu uma tal justiça que encare o agir justo nesta medianidade - porquanto a isto dar-se-á o nome usurpação de potência -, à exceção, é claro, da norma. Mas esta, em sua natureza, não é tal que permita à realidade uma alteração substancial de sua efetividade, o que se faz deduzir, por fim, a justiça como o seu contrário, a dizer, como injustiça - justiça é injustiça.

Ass. Trasímaco.

domingo, 16 de outubro de 2011

Hubris ou (Megalo)manias Mesopotâmicas




No palácio em Uruk, repleto de pompa e cerimônia; a cada sorriso do grande líder, miríades infantes copiosamente lacrimejavam . À cada cingir de suas sobrancelhas, seus súditos dançavam em perfeita harmonia coreografada - numa explosão de cores e ritmos na esplanada central, por baixo dos arcos comemorativos de seus mais fabulosos triunfos.

Como líder; filho dos deuses e pai de seu povo -  não poderia ser descuidado com sua vida e sua imagem. Todas as árvores nos seus domínios o pertenciam, e escalar uma delas era um atentado contra a sua honra.

Seu dever maior era proteger o povo de si mesmo, e dos tiranos dos potentados vizinhos. Afinal, a população, suas crianças : Não possuem o esclarecimento e a racionalidade que ele obteve de Ishtar, ou de Enlil. Estes eram fardos seus; cuidar para que seus amados súditos não caíssem nas mentiras e nos vícios morais. 

Ao subir no poder, o Grande Imã havia predito – “Superará todos os outros príncipes! “Aquilo o agradara muito, e como era do seu feitio, resolveu colaborar com a profecia.

Em prol de todos os seus filhos, o povo : Ordenou o assassinato dos líderes dos estados limítrofes, massacrou as tribos que seguiam outros deuses, e mandou construir em cada vilarejo um monumento em sua honra. Só para que não houvesse dúvidas acerca de suas legitimidade e ascendência.

Até que um dia, o império de infiéis o enviou um plenipotenciário, com um protesto formal sobre; o suposto massacre de mercadores, nômades em peregrinação, o confisco de galeras e barcos de juncos que navegavam por seus mares territoriais.

O benevolente Basileu, soberano, filho de Aruru, e Ishtar, possuía deveres mais urgentes, condizentes com a sua posição junto ao patamar dos deuses que habitam as profundezas. 

Mandou consultar seus sacerdotes, mercadores, generais e ministros do conselho de estado, que eram todos de seu sangue. 

Estes o deram o parecer de que, o emissário mentira-  e que cada vez que uma palavra escapava da barreira dos dentes, proferia um crime contra todas as gentes e deuses, e contra a divindade do Grande Líder!

Deixou a decisão mundana nas mãos deles, que cortaram o nariz e as orelhas do facínora, e o enviaram de volta num barril de esterco.

Na primavera do ano seguinte, enquanto observava a dança costumeira das virgens, das quais poderia exigir o direito de senhorio,  recebeu um tablete de um de seus sátrapas relatando a movimentação de tropas inimigas. Uma incontável coalizão de nações.

Consultou novamente o sumo sacerdote e o general dos exércitos, seu tio e seu primogênito, respectivamente, que novamente o garantiram augúrios vitoriosos, e a aparição de Namtar, o deus da perdição, na direção da invasão.

Com todas as hecatombes devidamente celebradas, abençoou suas brigadas que partiriam para a glória, e voltou-se às suas preocupações mais urgentes, a escrever sua história para a posteridade, e das revelações que recebia dos céus.

Morreu um mártir para o seu povo, que certamente o lamentará por toda a eternidade.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Mnemosine - O Folhetim 07


"Mãe!", havia eu gritado. Eu, Laércio em todo o meu Conatus... E eu dizia: "quero ser bom, quero ser jovem, quero ser magro, gordo e forte!", mas nada muda; e mostrava aos meus heróis a fita no meu quarto. E repetia; girava, girava, girava em mim e para fora. Rodava e era bom! E eu acalmava-me, então, e parava e sentava e sentia e sorria e chorava e parava e rodava e era bom... § E nada muda e o meu Conatus... e os sortilégios, gritavam e clamavam, mas nada, nada mudava. E aquela palavra: "Mãe!" ecoava e eu rodava... E era bom. Algo era belo! Isto era belo? Já não sei mais... E desabafo: "queria poder dizer, que, se eu sou feliz, 'eu sou triste'; e que, se eu sou triste, 'sou feliz'..." mas nada, nada muda. Agora, eis aqui, engasgado; Laércio engarrafado! Tamanho hederáceo! Laércio, filho de Barnabás, gritava à Terpsícore: "Mãe!" Mas sempre longe o eco e sempre curto o fôlego, chegava lá apenas um beijo, na testa, no cabelo, de lado e sem dar. § E fechado em seu mundo, de máscaras e jogos e palavras aos ouvidos atentos: pois que enquanto fingia sentar - à cadeira, à mesa - para estudar, sorria e corria em si; e deixava, deixava-se rolar e girar e rodar e pular, mas sem mover-se, sem sair do lugar... E sentava ao chão, ao lado de seu tão conhecido tapete vermelho e azul, desbotado pelo tempo e maus tratos de menino e seu peão. À sua frente a televisão, muito baixa: ouvidos atentos! Prestava-lhe atenção, Sr.ª Porta, a ti que abre de repente e trás de fora novas pessoas - nem tão novas em sua memória - de hábitos! § Quando a Sr.ª Porta lhe prestava o serviço de ranger, pois o óleo já nem tão bom e nem tão velho - o que fazia-lhe ter de deixar tão baixo o volume enquanto brincava em seus pensamentos (e os olhos de um lado ao outro, e os dedos de cima para baixo, diziam: "estou pulando... sem estar!) -, chegava a hora de correr! Ligeiro e pés suaves: "vamos, vamos! à cadeira, à mesa! Já! Ninguém pode me ver..." Deve-se dizer que isto é belo? ... Talvez afirmar que há dois, isto sim! Dois Laércios: Conatus e Hederáceo! E tudo outra vez - gemini, embora pisces\

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Saginata: história do território interior



Há, agora, dentro de meu estômago um grande ponto branco. Este ponto branco é em mim um grande vazio. Ele me dá fome quando estou saciado, me dá sede quando já então me afogo e me corrompe a sempre sentir falta de algo que me alcança. Estou agora com um crescente ponto branco em meu estômago - e ele se move em mim. É grande e já não mais é um ponto; e vai e volta e enrola e solta. Passa e arranha em mim este traço e cresce e me toma. Serra em mim este fio e maquina-me por lacerar minhas vísceras. E sobe e alaga o meu pulmão; e força e me torna cancerígeno. Esfacela meu baço este traço e alinha-se ao emaranhado de minha massa. E sempre que vai mais acima escapa-me por entre os poros e revela-se-me em orifícios. Destrói-me e permite-me inconcluso; e... 

domingo, 2 de outubro de 2011

Tempus Fugit

Há através da ideia de progresso, no curso temporal dos movimentos,um certo contínuo sequencial que traz em si um clamor marcial de -Victori Spolia - Ao vencedor, os louros da vitóriaComo se tudo que vier em seguida, seja espontaneamente mais legítimo que o modelo anterior..

O que o ponteiro ultrapassa é devorado pelo abismo, e o novo passa a ser verdadeiro. O belo perde as cores, torna-se árido, é olvidado. Tons outrora ressonantes e melódicos tornam-se ruídos desarmônicos , cada vez mais longínquos, e ainda assim, irritantes.

Gilgamesh, aquele que viu as profundezas,não nos pode mais ensinar coisa alguma. Fora subjugado, seus feitos apagados dos tabletes; agora se defronta com o vazio. Dante não atravessa mais o Pórtico infernal. Agora o mastigado e digerido resumo vale mais que o deleite nas referências, é o deleite de deletar. Assim corre a história.