segunda-feira, 21 de março de 2011

Uma questão de espírito


Pela janela dava para ver que o mundo lá fora estava muito agitado. Já do lado de dentro, Amanda estava sentada em sua cadeira, tipicamente abaixo do ventilador e perto do canto mais afastado da porta. Era uma aula sobre política, porém ela não estava muito interessada em nada daquilo. Pelo contrário, o que mais a interessava era justamente uma coisa que o professor, um senhor já com seus sessenta anos e uma pança condizente ao seu estatuto - de senhor, professor e político de carreira -, jamais poderia dizer-lhe.

Ela via enquanto as pessoas andavam sufocadas entre o branco do concreto e o cinza das nuvens de uma cidade de respeito, como era a dela, e esqueciam como o céu era azul. Mas Amanda pensava mais além. Em seus devaneios, ela notou que todos seguiam um modelo meio que predefinido; uma espécie de padrão. Sempre olhavam o relógio, com a mesma pressa e a mesma urgência. Isso a fez lembrar de um livro do qual gostava muito de ler durante a infância: Alice no País das Maravilhas. Como todas aquelas pequeninas pessoas através da janela lembravam o Coelho Branco, pois não importava a situação, sempre pareciam atrasados.

Os poucos que passavam sem rugas e pés-de-galinha no rosto eram logo repreendidos por olhares; olhares de trabalhadores, gente esforçada e malograda por terem de presenciar tamanha obscenidade. Afinal, onde não se tem espírito, só se pretende o fim. Pois bem, Amanda, então, parou e escutou um pouco do que dizia aquele velho demagogo cuja situação obrigava-a a chamá-lo professor. Não que ela tivesse prestado atenção, foram apenas algumas frases soltas: "o mundo gira com o dinheiro" e "o progresso é amigo da ordem e do desenvolvimento, vindo sempre para o melhor".

Ela voltou a encarar a janela, agora, pela luz que entrava, dava para ver um pedaço do seu rosto refletido. Ela virou-se para a sala novamente, quase devagar, e notou os colegas. Todos com o mesmo padrão: caras de tédio e ansiosamente olhando para seus relógios e sapatos e, também, uns para os outros como que perguntando, "mas o que diabos a gente tá fazendo aqui?" "pois é", pensou Amanda, "o que é que eu tou fazendo aqui?!" e, tendo falado a última palavra em voz alta, sem perceber, chamou a atenção do professor.

"Querida", disse ele, "o que você acha da democracia de hoje em dia?" Ela parou, coçou sua perna esquerda com a mão direita, levantou os olhos, mexeu levemente o nariz, e disse: "Professor, o que você entende por democracia?" O professor não entendeu de imediato, já tão acostumado a sempre ouvir e falar as mesmas coisas e a sempre que pronunciar algo ter a ovação como resposta. Ela, então, voltou-se novamente  e continuou, dessa vez olhando para o chão: "eu não acredito que em nossos tempos seja possível falar em democracia... Ela já deixou de ser um problema para todos os dias e nós nos acostumamos a isso".

Para o sósia de Sancho Panza aquilo já era demais! Primeiro aquela menina vulgar ficava olhando em volta, sem interesse. Depois, falava sozinha palavras que nada traziam de cortesia. E, por último, tinha a petulância de desvirtuar uma pergunta sua, fazer outra pergunta, cheia de ironia, e responder-lhe um tamanho desaforo, principalmente devido a sua profissão. As providências tinham de ser tomadas, afinal, a verdade é uma só! Nós temos, é claro, uma democracia! Se não fosse por isso como é que ela ainda estaria nesta sala? O professor olhou para Amanda e, com ímpeto, "mocinha, sua prova, agora, valerá dois pontos a menos! Não volte a polemizar, não é para isto que estamos aqui... Isto é uma democracia, primeiro o interesse dos mais numerosos!"

Amanda não se conteve; ela sabia que era uma questão de tudo ou nada! levantou-se e tinha o rosto vermelho. Nesse momento a luz entrava pela janela e iluminava toda a metade esquerda de sua face, fazendo com que sua pele ficasse de um alaranjado de um lado e vermelho-tomate do outro. Assim, "Professor, me desculpe, mas a paz é o pior dos males! Se por um lado cessa as angústias dos conformistas, pressupõe, prediz e antecede à guerra... Além do mais, por acostumar as pessoas à calma e ao sossego, aliena-as e as faz pensar que está tudo bem. Só quero dizer", e o fez já retirando-se da sala, "que sinto falta de um propósito a lutar, de uma camisa a vestir - e sem ter de recorrer aos velhos espíritos de antes! Quero um motivo pra viver! Isto aqui já está falido desde que começou."

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