terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Aranha disciplinar


"Volte aqui meu amigo... Vamos conversar mais!", gritara Alberto para aquele grande charlatão que era Emanuel. Tudo acontecia em uma prisão - estilo o pan-óptico, com sua torre central - e os dois eram já há mais de duas semanas companheiros de cela. Ambos já estavam tão acostumados um com o outro que era impossível separá-los... Mas bem, eles estavam unidos pelo "olho central" e, ainda que quisessem se ver livres um do outro, seu pedido lhes seria negado pelo controle disciplinar: o seu amigo - quase único além de si mesmos (que já compartilhavam de um só corpo; corpo doutrinado) - [o seu amigo] "olho central". Aquele espectador faminto, que se expunha contorcido em volta, como uma aranha, ao alcance de tudo que sobre suas teias. Este, ao perceber o movimento e o tambor vocal do assassino em direção ao charlatão, rufara: "Números 1.531 e 1.532, preparem-se já para a inspeção!". Silêncio: mais um dia de disciplina.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Real: introdução ao desespero


Sentado na cadeira de um quarto pequeno - à sua frente um computador e ao seu lado as roupas em um varal improvisado -, B. quisera mais do que qualquer outra coisa chorar. Só isso: chorar e chorar. Lembrou-se de todas as outras vezes, entretanto, em que, no seu passado, ao ter este semelhante sentimento, prendera-o e controlara-o. Não conseguira em uma despedida e sequer em um enterro - qualquer lágrima que viera, ficara tão somente por dentro (e, ainda assim, escondida). No clube do silêncio - onde não há música e não há nada -, as suas lágrimas eram reais; mas, contidas pela força de um simulacro, sua face limpa era ainda mais.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Bana(na)lização


Óculos estavam pendurados por todos os cantos da sala. Um na mesa de canto, outros no lustre e outros na janela; mais alguns na mesa de centro e um único caído no chão. Vários móveis estavam espalhados ali também - e quase todos ou enchiam-se de livros ou de óculos. Talvez por causa disso o ambiente cheirava mal, mas ainda era possível que fosse um prato de comida que ficara esquecido desde a última quarta-feira na escrivaninha inútil. A janela estava fechada e apenas um buraco de traça permitia um pouco de luz na sala. O raio, por sua vez, batia justamente naquelas lentes jogadas no chão; e, por conta da resina, o que era amarelado saia colorido. Uma barata observava curiosa a refração e o corpo doente daquele que havia comido jazia morto ao lado. Talvez a barata estivesse nele interessada.

domingo, 13 de janeiro de 2013

Anátomo-grafologia


Em um canto de uma mesa redonda, aberto, porém não escancarado - se isso é possível de alguma forma, sem que mãos o segurem -, estava um livro qualquer que um anônimo leitor esquecera. Ele era marrom e pequeno: mas junto de outros livros de mesma cor [i.e., marrons] dir-se-ia  que puxava para o verde, enquanto já ao lado destes, ao amarelo (fato, entretanto, que faz necessário dizê-lo marrom, ou não?). De seu tamanho, embora pequeno, nada muito importante, senão comentar sobre sua pequenez junto ao outro que lhe fazia companhia; mas maior que a mão do leitor aventurado neste texto. Aliás, quem era, afinal, esta pessoa misteriosa? deve-se pensar a princípio que isto não vem ao caso, em razão de seu anonimato; entretanto, estaria ali o livro se não fosse por ele? Estaria uma página deste antigo artefato manchada de suor se não o tivessem tocado e manuseado? E por que não dizer: existiria um livro se não houvesse quem o lesse? Nem mesmo hipoteticamente isto seria possível - enquanto fosse um livro este "livro". O que se escrevera nele, contudo, era um mistério completo: não só devido ao seu banal esquecimento, mas acima de tudo por não mais ser possível lê-lo como escrito, senão como lido. E é por isso que as resenhas sempre dizem algo tão comum... Algo evidentemente refletido na ignorância do normal... Algo tão vulgar e meticulosamente desmedido como "esta é a história de um rapaz...". Não é para menos que Poe, como um corvo - com seus olhos pretos e cabelos poucos - dissera repetidamente ao leitor "nevermore" ("nunca mais"). Um evidente descaso ao senso estufado do porco que diz entender o livro "nas palavras do autor". O fato é que no canto da mesa redonda estava um livro aberto, em algum tom próximo do marrom, com uma das páginas manchadas de suor, abandonado, esquecido ou propositalmente largado por um leitor anônimo, cujo interior imediatamente visível grafava em tinta escura uma frase nem um pouco simples de engolir - ainda que toda [frase] seja fácil de compor. E assim era apenas:

"Leia-me como a ti for possível!"

domingo, 6 de janeiro de 2013

Desconforto - "J. & M." 03


Era impraticável... Aquele amor não poderia durar cercado de mentiras e culpa e cheio de infantis descontentamentos. Ao deitar-se na cama e olhar o corpo nu e suas mãos juntas, sabia que tudo aquilo era ótimo, embora simplesmente errado. Fumavam, agora, um cigarro, sentados na cama e calmos - com o coração palpitantemente trepidante. Tudo fora muito rápido e inconteste. Tudo fora já demasiadamente contestado por suas cabeças encostadas. Um via-se no outro como em um espelho, mas eram tão diferentes  - e já há algum tempo estavam tristes com o desfecho.

Ela já estava bem com tudo, pois seu marido aceitara o intruso que ele era... J. um intruso em sua própria cama... Descontente com sua precária fraqueza em recusar os seus corpos. Feliz, ainda assim, por já estarem há tanto tempo juntos... Ele a desejava sempre mais, mas seus olhos traíam a sua insegurança: denunciava e infligia horror. E mesmo o pássaro pousado na janela era capaz de perceber que entre aquele vapor sexual, entre a fumaça vertiginosa de seus cigarros fálicos, pairava uma nuvem de embaraço... Agora era ele quem estava na posição do "não" - mas M. nada dizia...

Eles estavam felizes por sua tristeza mútua; por suas vozes calmas e amáveis. Ele não sabia mais a razão de não querer estar com ela se tudo o que faziam era excelente... J. era um vagabundo caminhando pelo lago de sua dívida consigo mesmo. M. não entendia o que estava errado, apesar de sentir na fumaça de seu cigarro o cheiro costumeiro de um crime; o afável pressentimento de um desastre iminente. Um amor culpado! E no perfeito momento do "não" esperado por ambos para um desfecho celestial, um beijo calara o pássaro que, ao voar, deixara o preto de suas fezes no parapeito da janela. Aliás, no peito dos dois. No desgosto do desejo. Só mais um pouco... Só para sempre; existindo em um "eu te amo".