terça-feira, 8 de novembro de 2011

Jabberwocky



 Para o positivismo, o uso dos símbolos numa situação real é que confere significado a uma norma, pois a maioria da letra do legislador é geralmente aberta a interpretação, não existindo assim uma fórmula interpretativa intrínseca ao próprio texto normativo.
Após a criação da sua teoria pura do Direito, Kelsen foi desafiado a criar uma teoria para a interpretação, que até hoje é um dos pontos mais complexos da teoria positivista Kelseniana. Como justificar um método de interpretação? Visto que para Kelsen, em sua primeira edição, o Direito era aquilo que estava positivado, e a norma poderia e deveria ser isenta de valorações zetéticas, como tanto é repetido nas aulas de introdução ao Direito, ele postulava que a norma jurídica tiraria seu poder vinculante da autoridade legislativa e aplicadora do Direito, e não de pressupostos naturalistas como até então era disseminado.
Muitos dos que analisaram a Teoria Pura do Direito, colocam um enfoque escapista nos métodos de interpretação propostos pelo austríaco. Talvez tenha sido mesmo escapista, mas venho a crer que não era somente uma escapatória, mas sim uma parte inalienável do sistema proposto por ele, e a única solução passível de concordância com o resto da Teoria Pura, dado que qualquer análise, mesmo que vaga possa constatar que talvez a teoria da interpretação seja o ponto chave de todo o sistema legalista Kelseniano.
A influência norte-americana é perceptível na sua tendência a localizar a interpretação num enfoque de competência operadora, e não doutrinária; se para tal teoria o direito surge da norma positivada, não estaria propondo o alicerce para a posição de poder do operador do direito?
O legislador imprime sua vontade no texto normativo, mas as palavras cedem obrigatoriamente espaço para uma interpretação, pois todo processo lingüístico é um processo intersubjetivo, é uma troca, do enunciado para a compreensão de quem interpreta.
Com isso, nasce a idéia da necessidade de existência de uma interpretação autêntica, de uma fictícia “interpretação verdadeira”, de achar a verdade escondida no texto legal. A própria noção de ordem jurídica exige o pressuposto da segurança jurídica, portanto, para o direito positivo, alguma autoridade competente deve criar o direito com uma interpretação.
Toda interpretação é um processo de doação de significados, todo aquele que interpreta algo o compreende de maneira diferente, existindo aí vários modos de interpretação, mas de grosso modo, só nos interessa diferenciar a interpretação não-autêntica da interpretação autêntica do órgão competente no ato da aplicação do direito.
Proponho-me a colocar a temática da interpretação jurídica Kelseniana de uma forma comparada utilizando de analogias literárias, munido de extratos de Lewis Carrol (Through the Looking Glass) e de Cervantes (Don Quixote),com o objetivo, de apontar as relações entre as teorias da interpretação autêntica e não-autêntica a algumas teorias da interpretação literária segundo o meu ver.
No início do livro – Alice Através do Espelho há um poema escrito com uma métrica anglo-saxã perfeita, mas com palavras ora em portmanteau, ora em nonsense, ou seja, de palavras inventadas através da síntese de uma ou mais palavras para formar uma nova, ou de palavras de criação arbitrária por parte do autor. Alice, ao ler o poema, se sente segura que ele quer dizer algo, mas não consegue interpretá-lo com segurança, pois não possuía nenhum método de interpretação válido ou ferramentas para fazê-lo, até encontrar o personagem de Humpty Dumpty, que é a voz do órgão judiciário competente para a interpretação, ele analisa a primeira estrofe do poema Jabberwocky: 

“Twas Brillig, and the slithy toves
Did gyre and gimble in the wabe
All mimsy were the borogoves,
And the mome raths outgrabe”

            Antes de analisar a estrofe, Alice o pergunta – “Será que você pode fazer as palavras significar tantas coisas diferentes?
            Ao que Humpty Dumpty responde – “A pergunta é, quem é o mestre? - Isso é o mais importante”.  E diz ainda – “Quando utilizo uma palavra, ela deve significar exatamente o que eu quero que ela signifique, não mais, e não menos.”

            O órgão legislador é o autor, que cria o poema, e as regras de interpretação, mas ele não cria interpretações corretas por si só, precisou autorizar Humpty Dumpty a dar significados específicos às palavras chaves, como quando diz que slithy seria a junção de slimy e lithe , e diz ainda mais; que lithe nesse caso, significaria ativo, não lentidão, que são os dois significados possíveis de lithe, do latim lentus ou do termo em inglês antigo lîthe (gentil, gracioso, atlético).
            A interpretação de Alice no começo do livro era não-autêntica, pois mesmo que entendesse que se tratava de um poema, e conseguisse encontrar um sistema, não conseguia encontrar nenhuma jurisprudência para legitimar a sua interpretação.  Lewis Carrol, como o legislador do texto, dá autoridade quase que constitucional para o personagem, cujas chaves lingüísticas até hoje são utilizadas por tradutores do poema para uma tradução mais precisa. Nenhuma tradução pode ser dita legítima, pois não é concordante com os jogos de palavras em língua inglesa do original, colocados no espírito do texto.
            Ao dizer que a palavra significa o que o mestre quiser, Humpty Dumpty, antecede a Kelsen na idéia da possibilidade de existência de chaves de interpretação, propostas pelo legislativo, que autorize um poder judiciário, ou operador do direito, a criar uma nova interpretação com a aplicação do Direito na vida real.
            A transfusão do poder das mãos do órgão legislador para as mãos do operador do direito é como o uso da linguagem. Lewis Carrol, em cartas sobre a temática da interpretação do seu poema deixou claro que era também sua intenção que houvesse um espaço livre para a interpretação do leitor, na medida em que ele não especificou o significado de todos os termos inventados, e mesmo que existam ilustrações, filmes, e obras derivadas do Jabberwocky, nenhuma pode pressupor ser a verdadeira, todas possuem igual espaço para diferentes interpretações, que como dito por Kelsen, toda lei precisa de um espaço para ser interpretada, senão o ordenamento jurídico seria uma besta imutável, e logo se comportaria como uma irrealidade não compatível com a vida social, que é inconstante e mutável.
            A interpretação dos apreciadores da obra é comparável a interpretação científica, que é um processo cognoscitivo - Pode entender o funcionamento e o sentido das normas gerais, mas não cria a interpretação correta. Para a teoria pura, o ato da análise por parte dos apreciadores que não órgãos operadores, só pode “estabelecer as possíveis significações de uma norma jurídica. Kelsen não acredita que a interpretação jurídica em momento algum seja só uma questão de conhecimento do ordenamento jurídico pré-existente , mas sim uma questão de política, em seu sentido quase maquiavélico, de que o “príncipe deva fazer tudo aquilo que se encontre em seu poder para manter-se no poder e para beneficiar o seu reinado”. Aí o caráter voluntário político é mais forte que o do saber científico, ele reconhece que o poder de criar direito não vem da norma escrita em si, mas de que fala o operador sobre a norma, acerca do espaço interpretativo deixado pela própria letra normativa.
Sobre a hierarquia das normas, ponto encontrado tanto no referente a relativa indeterminação do ato de aplicação do direito, e da indeterminação intencional do ato de aplicação do Direito, volto a alusão a obras literárias como fontes de exemplificação teórica.
A parte introdutória do livro El Ingenioso Hidalgo Don Quixote de La Mancha possui alguns poemas em décimas, de caráter humorístico, que eram chamados de décimas de cabo roto; consistiam em versos que suprimiam as sílabas finais depois da silaba tônica de cada ultima palavra, como em:

“ De um noble hidalgo manche-               No indiscretos hieroglí-
contarás las aventu-,                                  estampes em el escu-,
a quien ociosas lectu-                                 que,cuando es todo figu-,
transtornaron La cabe-;                             com ruines puntos se envi-.       
damas,armas,caballe-,                               Si em la direccíon te humi-,
Le provocaron de mo-                             no dirá mofante algu-:
Que,cual Orlando furio-,                       <<!Qué Don Álvaro de Lu-,
templado a lo enamorado-                         qué Anibal el de Carta-,
alcanzó a fuerza de bra-                            qué rey Francisco em Espa-
a Dulcinea del Tobo-. “                            se queja  de la fortu-! >>.

(primeira parte, preliminares)
A determinação do significado de cada verso, necessita de um conhecimento prévio das palavras, como manchego, aventuras, lecturas, cabeza , caballeros etc. Além desse nível cognitivo, ainda há um nível de determinação pré-existente, que é a condição de conhecer as obras as quais o autor se refere, como damas, armas, caballeros, que é retirado do prólogo de Orlando Furioso de Ludovico Ariosto. A composição e compreensão do caráter cômico de Don Quijote só se tornam cômica se forem levadas em consideração as suas origens como um reflexo humorístico da literatura medieval da cavalaria andante, e dos heróis superexaltados e perfeitos, que serviram de base para toda a sátira presente na obra de Cervantes.
            É o chamado - Círculo Hermenêutico, onde cada nível de interpretação necessita de uma compreensão pré-existente, e antes dela uma pré-compreensão, e assim por diante. 1111111
                Coloco ai a relação da indeterminação como – O conhecimento anterior das obras mencionadas permite a emolduramento, ou vinculação do sentido geral das décimas.
O sentido adotado pelos interpretes é de que – Num jogo de cartas da época, as figuras (soldado, cavalo e rei), tinham pouco valor (ruins pontos), e quando se aposta com elas (se endivida), é fácil perder a partida, se na dedicatória te mostras humilde ( te humilhas), nenhum malfeitor poderá dizer que acabarás como as grandes figuras históricas citadas, que acabaram em desgraça ( decapitação, suicídio, prisão etc.)
Faz-se necessário então, primeiro conhecer as obras mencionadas, para completar as estrofes, e só a partir daí, é que se pode começar a achar os espaços de interpretação propostos pelos enunciados, o lado não intencional da interpretação, é o enquadramento dos termos lingüísticos em todas as suas apreciações possíveis pela parte do leitor, é impossível que duas pessoas ao ler o mesmo texto possuam o mesmo grau de conhecimento acerca todos os aspectos da obra, como dito por Kelsen
De todo modo, tem de aceitar-se como possível investigá-la a partir de outras fontes que não a expressão verbal da própria norma, na medida em que possa presumir-se que esta não corresponde a vontade de quem estabeleceu a norma “
Sempre poderá se focar numa análise do texto com um novo ângulo investigativo, e através de novas ferramentas lingüísticas, pode querer se focar no aspecto do estilo literário ou do enfoque histórico É sempre passível de novas interpretações que se encontrem dentro da moldura, as décimas são as molduras, e os enfoques são as várias possibilidades de aplicação. O leitor é livre para apreciar a obra como bem entender, contanto que possua o mínimo embasamento teórico para localizar uma idéia geral da intenção do autor.
A necessidade de achar uma chave de interpretação da norma, na figura de um órgão operador do direito autenticando uma interpretação, é necessária, pois o positivismo jurídico depende do pressuposto da segurança jurídica.
            Para a aplicabilidade da sistemática jurídica, deve-se sempre ter em mente que o objetivo máximo dos métodos interpretativos, é reduzir o número de possibilidades interpretativas para um número prático e viável, para criar um sentimento de proteção.
            A crítica a Kelsen baseia-se na sua incapacidade de encontrar métodos dogmáticos de interpretação, e relegando a atividade interpretativa ao mero poder “tirânico” do operador do Direito.    
            “A Teoria Pura do Direito trata o Direito como um sistema de normas válidas criadas por atos de seres humanos. É uma abordagem jurídica do problema do Direito.” - Hans Kelsen.
            Ora, a crítica pós-positivista entende que para o direito ser válido, deve ter o povo como titular do poder do estado (um dos fundamentos do estado constitucional), o bem estar social deve estar sempre em primeiro plano, não apenas a autoridade normativa, pois as autoridades, não são nada mais que representantes da soberania do povo, como colocado por Paulo Bonavides.
            Imaginemos agora, que dom Alonso, o dom Quixote, tivesse sido nomeado Governador de uma Ilha, e através de seus conhecimentos dos antigos códigos da cavalaria andante, resolvesse implementar uma nova idade média na sua ilha em pleno território espanhol do século 17; através de decretos que estabelecessem normas de comportamento, de etiqueta e mesmo de fala antiquados. Agiria o nosso fidalgo de forma mais incongruente do que já agia no seu livro, pois, a realidade social de sua época não admitiria tamanhas ambições de ideais heróicos ou cruzados da vida da cavalaria. Ele estaria usando de uma chave interpretativa imprópria para criar normas jurídicas. Seriam as chamadas normas constitucionais inconstitucionais.
            É por essas e outras razões que se faz necessário o uso das novas técnicas interpretativas na atividade hermenêutica, todas elas em conjunto, a análise gramatical,a análise lógica, a análise sistemática, a análise histórica e a teleológica.
É preciso fugir do autoritarismo normativo Kelseniano. A interpretação autêntica existe, mas, como bem disse Michael Miaille – É necessário adequar o direito à realidade social, às ideologias, aos conceitos de justiça e aos processos institucionais e normativos. Não se pode mais concordar que exista Direito legítimo sem o pressuposto de resolução de conflitos e de busca pelo bem estar social.
Seria igualmente precipitado descartar o mérito da Teoria Pura para com a criação do positivismo Jurídico e suas profundas influencias na criação do Direito moderno, o mais justo, no sentido de apreciação de mérito, é que ao ler-se sobre a Teoria Pura e seus métodos de interpretação, haja espaço para apreciação do momento histórico e da finalidade do autor, afinal, até a teoria de Kelsen não possui uma única interpretação verdadeira. 

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