domingo, 10 de abril de 2011

Über Kafka: repressão, direito e burocracia.



B. não ocupava o mais alto cargo dentro do tribunal. Ele era antes de mais nada, e isso é importante frisar, apenas um funcionário. Mas era um funcionário, e era muito importante. Mas não o mais importante, o que fazia com que ele fosse apenas um funcionário, nada mais. Todos os dias, B. Chegava ao tribunal ao meio-dia em ponto; não hoje, pois ele atrasara-se, tendo chegado às 12:46. Isto não era habitual, mas ele começou a pensar que poderia ser, tendo em vista que nenhum de seus colegas havia chegado a esta hora. 

Como ele sempre chegara cedo e começava a trabalhar tão logo chegasse, nunca havia observado todo aquele silêncio, não fosse por seus passos, sua respiração e aquela outra funcionária que vivia cantarolando certas coisas sem sentido enquanto o olhava pelo canto dos olhos. Mas quem era aquela funcionária? Na verdade, não importava. Ela, ao contrário, pensava diferente; e tendo visto que B. a observava pulou de sua cadeira com muita diligência e veio arrastando-se até onde ele estava. Disse-lhe, então: "A peça não está pronta."Já eram 12:50.

Passaram-se 15, 30, 45 minutos e ele estava ficando impaciente de contar quantas casas havia à vista pela janela, pois na verdade, como não haviam muitas, ele simplesmente continuava contando as mesmas como se fossem outras. Ele dirige-se àquela funcionária e pergunta se a peça está pronta. Ela, como se nunca tivera com ele falado:  "não sei do que se trata." B., perplexo, exclama: "quando eu cheguei não havia ninguém, agora que há, a Sr.ª não quer falar comigo. Pensava que a Sr.ª fosse apenas uma funcionária, mas vejo que é algo a mais. Na verdade, talvez nem seja, mas penso que é e isso me acalma. Pois quando eu nada sabia a Sr.ª provocou-me este assunto da petição e agora já passou-se uma hora e nada da peça." "A questão", pronunciou a funcionária enquanto passava as mãos no peito de B., "é que ainda não foi encontrada a guia do pagamento."

B., então, procurara vários funcionários, todos, de qualquer forma, de menor escalão que ele, mas sem sucesso. Até que, ao voltar à sua sala, já desesperado, embora mantivesse a calma e não soubesse qual o motivo de ter pressa - afinal, estava em um tribunal, pensara - encontrara em cima da mesa a guia paga e a petição pronta e assinada. Abrira a porta e olhara para aquela mulher que chamava-o com os olhos (e aquela boca). Ele fora e ela começara a sussurrar-lhe ao ouvido. Estava então embaixo da mesa; sua pele muito próxima à dela. Enquanto ela torturava-o com aquele deslizar-se, ele pensava em seu trabalho; mas acabou em um ritmo ofegante. Ela então, ainda suada e semi nua mostrara-lhe uma cicatriz no ventre, o que fez B. morrer de ódio e nojo daquele ser que, agora, pensara não saber quem era. Ele levantou-se e saiu daquele lugar, sem dizer uma só palavra.

Perdido, tendo a guia e a petição em suas mãos, saiu de seu andar, tendo subido uma tortuosa escada, cujo fim parecia jamais chegar. Alcançando, porém, o andar pretendido, ele questionara outro funcionário, que por sua estatura e aparência devia ter uma posição muito mais baixa que a sua, não obstante, fosse respeitável, com as seguintes palavras: "onde consigo as cópias, pois já tenho em mãos a guia de pagamento quitada e a petição." O funcionário, andando várias vezes ao seu redor, olha-o cheio de confusão, mas indica exatamente o setor de protocolo e a biblioteca, onde deveria pegar as pretendidas cópias. Já eram 14:02.

Daí, B., seguindo o que lhe dissera aquele vetusto funcionário, chega ao protocolo, mas lembra-se que deve primeiramente ir à biblioteca. às 14:05, chega à biblioteca e pede as cópias. Ao olhar em volta vê várias pessoas, todas com processos abertos nas mesas e canetas nas mãos. Percebe que aqueles deviam fazer o trabalho de copiar os documentos. Entendeu que deveria pagar uma nova guia, e teve a anuência da bibliotecária, pois esta disse-lhe: "toda guia deve ser paga no instante do procedimento da cópia, e, como o Sr. pode ver, a sua já foi paga às 12:40. Além do mais, as cópias já ficaram prontas a muito tempo, o que nos fez jogá-las fora e começar uma nova, tudo pela defesa da sociedade e da burocracia, que nos dá vida - e faz-nos viver por ela."

B. não teve dúvida, saiu da sala às pressas e correu ao banco que ficava no seu andar. Após enfrentar a fila e pagar o novo boleto, retornara à biblioteca às 14:46. Porém desta vez pensou que talvez aquelas cópias ainda não estivessem prontas, o que o forçou a voltar à sua sala. Às 15:01 sobe o lance de escadas e chega àquela sala cheia de escribas, todos tão atarefados que permaneciam sem um movimento, não fossem os seus braços - que funcionavam como máquinas, um escrevendo e outro virando as páginas. Pergunta pelas cópias e a mulher, aquela bibliotecária empoeirada, entrega-lhe, mas sem tirar B. de seus olhos. B. pensa que aquele deve ser um lugar muito perigoso e volta à sua sala.

Quando o relógio mostrava 16:17, sabendo não mais poder evitar e tendo lido mais de uma vez as cópias que pegara, sobe novamente as escadas, com a peça em mãos e segue para a sala do protocolo. Fala a um funcionário, mas este não lhe dá muita atenção, apenas estendendo a mão para pegar a petição, sem tirar os olhos de algum ponto fixo, cujo local exato B. não conseguira identificar. Já carimbada a sua via, segue ao gabinete do Desembargador, onde deveria ver um processo para tirar cópia de uma petição.

Chegando lá, às 17:33, e sentindo um ambiente muito mais sólido e grave do que qualquer outro, fala com um estagiário: "Na verdade, preciso ver o processo para identificar qual é a petição que devo tirar cópia." O funcionário entendera o problema, mas, talvez por má vontade, pois B. não se apresentara, pediu que aguardasse. Após 15 minutos, volta com o processo em mãos, mas antes de entregá-lo chama por sua superior. Imediatamente surge uma mulher enorme, com cabelos penteados e lábios pintados, terno cinza bem tratado e sapatos de bico fino e salto. Ela dirige-se a B. como uma cobra à presa e enroscando-o em suas presas, pergunta: "O que o Sr. deseja e quem é o Sr?" "Eu preciso olhar o processo para identificar o que deve ser copiado, e, quanto a sua segunda pergunta, não vejo importância em respondê-la." "Mas ela é primordial, pois este processo é de extrema importância. De qualquer forma, vamos esquecer deste assunto. Apenas me diga por que o Sr. deseja ver o processo, pois vejo que o Sr. é um alto funcionário, embora não seja o mais alto." B, sem saída, diz não saber, impressionando aquela figura imensa. Mas, ao contrário do que esperado, ela dá-lhe sua permissão.

B. olha várias e várias vezes, mas sempre que pensa ter achado alguma coisa e dirige à Secretária a sua indignação por não entender o que se passa no processo, tem-no retirado de suas mãos e analisado brevemente por aqueles olhos estreitos e calejados pelo tempo. B. não aguenta mais, já eram 18:40 e ele não tivera nenhum resultado. Pensa que já fora suficiente e, de fato, externa sua opinião à Secretária, a qual, cheia de constrangimento na voz, exalta: "Mas não deves esquecer, primeiro o trabalho, sempre o trabalho! Não importa mais nada! Não desobedeça! Por mais difícil que seja seguir toda a sistemática, e sei que não é nada difícil, o Sr. deve continuar até que chegue ao fim, nem que isto leve a sua vida inteira e ainda que nunca consigas viver fora de tudo isto e além disto!" B., consternado, balança a cabeça e segue sua pesquisa.

2 comentários:

  1. "O que o Sr. deseja e quem é o Sr?" "Eu preciso olhar o processo para identificar o que deve ser copiado, e, quanto a sua segunda pergunta, não vejo importância em respondê-la."

    É-PI-CO

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