segunda-feira, 27 de junho de 2011

Bülow: entre o sonho e a epifania


O quarto estava quase todo tomado pela escuridão, não fossem os vários pontos azuis e vermelhos dos aparelhos em standby. Bülow estava deitado em sua pequena porém confortável cama, dormindo em sono profundo e tudo estava calmo. No quarto apenas os sons indistintos do ar-condicionado e do cair de água do filtro de seu aquário. Dormia, não obstante, inquieto e mexia-se bastante – tanto é que o lençol que a princípio lhe cobria até aos ombros estava agora em sua cintura, e seu pé esquerdo aparecia já para fora da cama.

Em seu sonho intranqüilo deixava-se perseguir por uma vontade que, muito embora se diga apenas uma realidade passageira, crescia e expandia-se em sua mente sã, nos dias que se foram. Já não era a primeira vez que sonhava aquela estória, e não seria a última, talvez. Queria, contudo, que este sonho, assim como seus desejos fossem todos embora para nunca mais... nunca mais o perturbarem, pois eram torpes e violentos. Mas, como que sendo seu desejo secundário, e sendo sua vontade, aquela à maneira de Sartre, mais reta e clara, fez sua escolha inconscientemente.

Em seu sonho repetiam-se sempre as mesma passagens, as mesmas pessoas, as mesmas figuras; e ficava sempre e apenas a idéia de que dever-se-ia dar ouvidos aos velhos deuses – os de outrora; os deuses dos arvoredos, das sombras, dos cantos e dos ventos. Aqueles que o agora e o depois tentavam esquecer e os que sempre seriam sempre mais e mais como a morte de todos os descrentes. Pois se os valores foram transmudados, seriam, porventura, tresvalorados e passariam, no devir, a ser o porvir do passado.


 Andrei andava descalço sobre a grama, era macia e suave, sua pele tocava-a sempre de forma muito tranqüila e excelente. A sua frente, ao levantar a cabeça, todo o mundo se desdobrava e percebia aos poucos que tudo aquilo era seu, era seu eu. Letícia, que Andrei já avistara a muito, vinha correndo contra o vento e seus cabelos balançavam sempre cobrindo-lhe um pouco o rosto; seu vestido branco levantava sensivelmente, mas sua mão cobria-lhe certa altura de sua perna e assim tudo permanecia.
Andrei a observava vir a seu encontro. Era esperado que chegasse ofegante. Chegou, enfim, mas não aparentava o seu esforço e olhava-o de uma forma estranha. Ele se referia a ela como uma pessoa já distante, e suas pernas passavam a fazer parte da grama em que pisava. Seu rosto, a alguns minutos tão lívido, agora encontrava-se retorcido e agonizante. Ela mantinha a calma, entretanto. Sabia que ela deveria estar apenas se apressando a chamar-lhe à ceia, pois já era tarde.
Todo o seu corpo mudava e nada do que fora era agora. De seus braços pó, de sua pele, escamas. Suas pernas, que faziam parte do terreno, já não eram suas e seu corpo era um só seguimento firme e tubular. Ele a seguia no caminho de volta a casa, mas o horizonte, tão largo, estreitava-se e encurtava-se. Transformando-se, então, numa simples reta de corredor ladrilhado. Lá a cobra andava e ele a seguia.
Andrei olhava o corpo rastejante de Letícia e ouvia passos ao fundo. Ele sabia que algo estava mais certo naquele momento do que no princípio; isto o acalmava. Os sons aproximavam-se de seus ouvidos, embora nada pudesse ver ou ouvir propriamente. Sons indistintos rachavam-lhe os ouvidos, mas nada surgia. Letícia seguia a frente; no corredor vários quadros, dentre eles um de Bülow, seu amigo.
Tudo começara a alargar novamente; e como que chegando a uma antecâmara guardada pelo tempo. Bülow passa e o cumprimenta – segue, contudo no sentido contrário. Andrei para, Letícia volta a sua forma original, não obstante seus olhos fossem trevas e seus pés fossem um só com o solo. Várias formas vão surgindo do chão derredor. Falavam no idioma dos antigos e moviam-se como eles. Andrei sabia o que viria, mas não ousava dizer.
Uma das figuras incorporou Letícia, e esta passou a ser uma só com aquela. Bülow era a figura, Letícia sua alegria. Bülow fala para si e para Andrei:
-Senhor, chegastes até aqui e sabes quem eu sou. Sabes que antes eu era e agora eu sou tu. Te olhas e me vês. Te tocas e tocas a mim. Sabes, porém que eu sou terra e trevas e nada. Sabes também que o meu princípio é a paz da guerra e o sangue e que jamais escaparás a isso. Percebes em teu ser que nada do que falo é mentira e muito menos verdade. Pois nada é... nada é jamais, foi e será sempre. Os antigos deuses, esses que eu-tu somos, são apenas representações de teu si mesmo, tu bem sabes disso. Letícia é tua alegria em ver as trevas de ti em mim e sabes que é assim.


Acordara Bülow sempre neste momento, sem entender até que ponto era ele quem falava ou simplesmente ouvia. Nesse dia, porém, ele fora até a biblioteca e entre eruditos e mitos e sombras, o silêncio sempre imperioso. Procurara um livro sobre os antigos ensinamentos e encontrara aquele da grande capa vermelha, com letras em grande gótico preto. Abrira-o, não o lera. Voltou para casa e refletiu até que caíra num sono profundo e sonhara tudo outra vez. Acordara no mesmo ponto, mas dessa vez com uma certeza, a guerra e a violência eram um com ele e princípio geral: matava para comer, comia para viver e matar novamente, até o dia em que morreria para ser comido ou seria comido por si ao morrer. E ao tombar seria um só com a terra e os velhos anciãos, deuses da natureza, pagãos.


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