sábado, 27 de novembro de 2010

Receber do Dado?!


Enviado por Danilo José Viana da Silva, Estudante de direito da UNICAP e integrante do PIBIC/UNICAP, sobre o pensamento de Lévinas.

Certa manhã compareci a um seminário, realizado na Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) – cujo tema era a crítica à pesquisa em direito. Ao final do evento, - o qual, na minha perspectiva, fora bastante sincrético, - tentei acrescentar à discussão um tema que acho interessante: “O problema da história das continuidades produzida pelo pensamento jurídico.”

Mas, após ter posto tal problema em debate, percebi que os palestrantes não eram familiarizados com ele; o primeiro palestrante desviou-se completamente do problema levantado, tratando assim de questões outras que não tinham lá muita coisa a ver com o que eu tinha dito; já o segundo, muito embora ter reconhecido, a priori, a falta de familiaridade com a problemática “historia das continuidades”, tento falar um pouco a respeito.

Este último levantou um ponto relevante (apesar de achar que nem mesmo ele sabe a relevância) que consiste numa questão de dados. Assim: “Se há uma tentativa de se contar uma história onde tudo necessariamente evolui desde a antiguidade até os dias atuais, é porque há dados que não podem ser deixados de lado, e que nos permitem falar assim”. Sinceramente, penso eu, este foi o único ponto proeminente na discussão.
Mas por quais motivos a questão dos dados tanto me chamou atenção?

Se a história oficial – onde os juristas historiadores tendem a determinar, desde os tempos mais remotos, a existência de germes dos órgãos e instituições jurídico-estatais hodiernas, as quais necessariamente seriam o resultado de todo esse evoluir linear e “incontestável” encontrada na massa dos livros jurídicos – afirma-se como “a” verdadeira história, ou a única verdadeira, é porque, justamente, uma de suas táticas é se “apropriar” de um “objeto” cultural como dado, concatená-lo nesta categoria (de dado).

Através de tal tática é possível atribuir um significado a esse “objeto” cultural e erigi-lo ao patamar hegemônico, fazendo com que diversas outras maneiras de se contar histórias sejam apagadas ou suprimidas. Este fato, por seu intrínseco significado conseqüente, subjuga outras possibilidades de criar-se histórias do direito de formas alternas, diferentes.

Foi aí que me lembrei de um texto escrito pelo filósofo francês Emmanuel Lévinas, cujo cerne é justamente o problema do “objeto” cultural e do dado. Logo no início escreve:

a essência da linguagem a que os filósofos concedem agora uma função primordial – e que vai marcar a própria noção de cultura – consiste em fazer luzir, para além do dado,  o ser no seu conjunto. O dado receberia uma significação a partir desta totalidade.[1]

Mais na frente, ele irá escrever que a totalização da totalidade não se assemelha a um operação matemática, onde chegaríamos ao resultado correto. O dado não tem o significado prévio e que subjugaria qualquer outra possibilidade de interpretação. O dado receberia (receber) uma significação sempre a partir da totalidade.

Neste caso, a história do direito ao contar os seus rios contínuos, sempre a partir da fixação do certo e verdadeiro significado daquilo que chamam de dado, nada mais faz que uma totalização prévia e ilusória, erigindo ao patamar hegemônico o sentido por eles – juristas – atribuído. Mas o dado não traria o significado que seria desvendado ou descoberto pelo jurista; ao revés, o dado recebe uma significação.

Toda a atribuição de sentido ocorre a partir de uma posição: sempre a partir de uma posição! Lévinas lembra também, influenciado por Merleau-Ponty, que o “olho não seria o instrumento mais ou menos aperfeiçoado pelo qual, na espécie humana, empiricamente, a operação ideal da visão alcançaria seu objetivo, captando, sem sombras e deformações o reflexo do ser.” [2]

Neste caso, haveria possibilidades de se afirmar que o dado já teria “o” significado dele, e que – como falou o palestrante – a partir dele se conta uma história entendida como a sua contínua e linear evolução. Dessa forma, ocorre a subjugação das outras várias possibilidades. Não é para tanto que o dado venha a corresponder a um totalitarismo, posta a propagação e reprodução em vários livros jurídicos, nos quais a escrita pressupõe o significado do dado. Tal empenho corresponde a uma grande quimera, pois os juristas que contam uma história linear, embora façam parte de uma cultura e sejam por ela influenciados, a constituem.

Assim, ao invés de se contar a história linear porque há dados que necessariamente comprovam uma evolução, deveríamos antes compreender que se trata de um possível significado, o qual, por razões conservadoras e/ou outras várias razões, foi erigido ao patamar hegemônico de história certa e verdadeira. Aquela perspectiva jurídica ignora um ponto relevante, pois “a ação cultural não exprime um pensamento prévio, mas o ser, ao qual, como encarnada, ela já pertence.” [3]

Se alguns juristas lançam mão de um Gesto Cultural, este não expressa um pensamento prévio; os dados, a priori, não expressam nenhum postulado. Tal ação cultural corresponde à expressão do ser, cujo sentido único, exato e imutável diz respeito a uma grande quimera.

Então, não há possibilidades de se compreender a ação cultural, a partir da qual poderíamos criar várias histórias diferentes e até mesmo não contínuas, sem que o pensamento esteja inserido numa cultura.

Reduzir um símbolo cultural a um dado e fazer deste a revelação de uma história oficial e verdadeira – subjugadora de todas as outras possibilidades de criação de histórias do direito – corresponde a um grande totalitarismo. Este é fruto de uma grande ilusão, ainda bastante calcada na dicotomia Sujeito/Objeto. Pois como lembra o próprio Lévinas,

o símbolo não é o atalho de uma presença real que lhe preexistiria; ele daria mais do que qualquer receptividade do mundo fosse capaz de receber. O significado ultrapassaria o dado não por superar nosso modo de captá-lo – mesmo que fôssemos desprovidos de intuição intelectual – mas pelo fato de o significado ser de outra ordem que o dado, seja ele a presa de uma intuição divina. Receber do dado não seria a maneira original de se relacionar com o ser.[4]

Já palestrante afirmou que os dados já trariam a sua própria significação, caberia ao historiador revelá-la; eis uma maneira não original de se relacionar com o ser, e de contar uma história do direito que cala as vozes torturadas num contexto de ditadura, por exemplo; época de grande horror no país. Mas tudo isso é como se fosse um problema invisível, várias vidas foram e são apagadas pelas páginas dessa história oficial e régia; cuja reprodução é lastreada por uma maioria dos juristas pátrios. Já disse Lévinas: “O invisível por excelência é a ofensa que a história universal faz aos particulares.” [5]


Para finalizar, parece que esses particulares, os quais, por exemplo, foram torturados e apagados simbolicamente pela ditadura militar de então, não podem ser alvo de interesse para uma história do direito. É um problema invisível para vários juristas: trata-se de uma irrelevância e, sinceramente, é pouco rentável; não traz lucro para o mercado editorial.




[1] LÉVINAS, Emmanuel. Significação, totalidade e gesto cultural. In: Humanismo do outro homem. 3ª Ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. P. 27.
[2] LÉVINAS, Emmanuel. OP. cit. p. 27-28. 
[3] LÉVINAS, Emmanuel. OP. cit. p. 29.
[4] LÉVINAS, Emmanuel. OP. cit. p. 31.
[5] LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Trad. José Pinto Ribeiro, Revista por Artur Mourão; Lisboa – Portugal: Edições 70, p. 224

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